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Made in Minas Gerais, porque quem conhece não esquece jamais.

Written by on novembro 7, 2025

MADE IN MINAS GERAIS, PORQUE QUEM TE CONHECE NÃO ESQUECE JAMAIS. PART 1.

Entre geografia, afeto e memória: a construção sonora da mineiridade a partir da obra de Lô Borges

No dia 03 de novembro de 2025, Lô Borges nos deixou. Desde então, inúmeras homenagens, vídeos, fotos e textos tomaram as redes, revisitando sua obra e suas muitas camadas, análises e perspectivas sobre uma música que conta não apenas a história de Lô, mas também a de Minas Gerais. Brinquei com alguns amigos dizendo que quem é de fora de Minas talvez não compreenda como nós, o que a música feita aqui realmente representa.

Achei ousado da minha parte fazer essa comparação, mas, para minha surpresa, todos concordaram. Foi aí que percebi o tamanho do legado de Lô Borges, não apenas por um certo sentimento de pertencimento mineiro, mas porque sua obra narra nossa história, traduz nosso modo de viver e nos coloca, de forma definitiva, no mapa da música brasileira. Em um país que nos anos 70, produziu pelo menos uma centena de álbuns inesquecíveis, um mineiro junto de seu melhor amigo, criaram uma obra-prima capaz de marcar para sempre os corações de nossos avós, de nossos pais, os nossos, e certamente, os de nossos filhos também.  

A música feita em Minas Gerais se apresenta como uma verdadeira cartografia musical, uma forma de mapeamento sensível que ultrapassa a simples sonoridade para se enraizar na geografia e no cotidiano do território. Nascida de um diálogo entre o interior e a modernização das grandes cidades, entre o silêncio das serras e os ruídos do crescimento urbano, ela revela as tensões de um estado que, ao mesmo tempo, preserva e reinventa sua identidade.

Esse fazer musical mineiro não é apenas estético, ele é também ambientação, um processo de se fazer reconhecer através da espacialidade. Ao cantar Minas, a música traduz montanhas em metáforas, horizontes em contemplação, e transforma a experiência da paisagem em afeto e hospitalidade. Há, nesse gesto, um exercício de topofolia, o apego e a emoção despertados pelos lugares, pela vista que molda o olhar e, por consequência, o som.

Uma rua, um buraco
Ficam sentadas umas pessoas
E eu fico vivendo com elas
E a gente é a paisagem
E os outros olham pra gente
Como se a gente fosse gente
E a gente fica esperando
Uma coisa, uma coisa
Que eu não sei o quê
(Aos Barões, Lô Borges – 1972)

Ao longo do tempo, essa música se afirmou como expressão de uma mineiridade múltipla, mas também paradoxal. Ela carrega a singularidade e a autenticidade de um território que se reconhece tanto pela interioridade quanto pela universalidade. Nas canções, a montanha é abrigo e também limite, a cidade é promessa e também ameaça, o tempo é permanência e também desconstrução. O resultado é um repertório que oscila entre memória e invenção, entre construção e desconstrução de símbolos, entre raízes e deslocamentos. Essa ambiguidade dá força às canções, elas contemplam, mas também criticam, acolhem, mas também ironizam.

Da janela lateral do quarto de dormir
Vejo uma igreja, um sinal de glória
Vejo um muro branco e um voo pássaro
Vejo uma grade, um velho sinal
Mensageiro natural de coisas naturais
Quando eu falava dessas cores mórbidas
Quando eu falava desses homens sórdidos
Quando eu falava desse temporal
Você não escutou…
(Paisagem da Janela, Fernando Brant/ Lô Borges – Clube da Esquina – 1972)

Ao longo das décadas, essa musicalidade construiu uma geografia própria. É possível dizer que Lô Borges ao lado de Milton Nascimento abriram caminhos e possibilidades diferentes na música. Juntos, reinventaram o mapa da canção brasileira, tudo isso a partir de uma vivência espacial na capital mineira. Eles misturaram rock, jazz, modas de viola e reza., com uma lírica que carrega o eco das montanhas, mas também o som da cidade que se encontrava em uma expansão de deixar de ser apenas o Curral Del Rei para virar Belo Horizonte, um diálogo entre a interioridade e o crescimento urbano.

Guaicurus Caetés Goitacazes
Tupinambás Aimorés
Todos no chão
Guajajaras Tamoios Tapuias
Todos Timbiras Tupis
Todos no chão
A parede das ruas
Não devolveu
Os abismos que se rolou
Horizonte perdido no meio da selva
Cresceu o arraial
(Ruas da Cidade, Lô Borges/ Márcio Borges – Clube da Esquina 2 – 1978)

Essa musicalidade mineira se distingue ainda pela capacidade de transpor a paisagem para uma dimensão existencial. O limite de pessoa-tempo-espaço não é uma barreira, mas um campo de criação, a contemplação do espaço físico se desdobra em percepções subjetivas, que se transformam em música, poesia, metáfora e até ironia. Essa capacidade de reconfigurar o real pela arte faz com que a música de Minas se torne não apenas uma leitura estética, mas também um comentário sobre o contexto social e político, um modo de resistência e afirmação cultural. 

Tudo isso veio de uma obra coletiva, forjada na vivência, no entrelaçamento de memórias e na escuta compartilhada. A música mineira é um espelho que devolve ao ouvinte não apenas a paisagem, mas a própria condição de ser no mundo. É vínculo entre artistas e comunidade, entre gerações. É também uma forma de afirmação diante das pressões de um mundo globalizado, um gesto de permanência que ressignifica o local frente ao universal.  

Quero estar onde estão os sonhos desse hotel
Muito além do céu, nada a temer, nada a combinar
Na hora de achar o meu lugar no trem e não sentir pavor
Dos ratos soltos na praça
Minha casa
Não precisa ir muito além dessa estrada…
(Trem de doido, Lô Borges/ Márcio Borges – Clube da Esquina – 1972)

Ao articular características do espaço com a subjetividade de quem nele habita, a música mineira se torna um território em si mesma, um lugar de identidade e de encontro, um espaço de manutenção das raízes, mas também de abertura para novos formatos. Assim, Minas se projeta não apenas como cenário, mas como condição de possibilidade da arte. E a canção, ao emergir desse solo, amplia sua dimensão de geográfica a simbólica, de íntima a universal tornando-se um testemunho sonoro da relação entre ser humano, espaço e tempo. Nossos agradecimentos eternos a Lô Borges, sua obra continua nos representando mundo a fora, sendo esse movimento que nos leva como vento.  

Uma canção tem cheiro e pode transportar
Uma fração de um tempo qualquer
Que a gente viveu num outro lugar
É diamante para lapidar
Na pedra bruta segue o veio da beleza
Quando faz soar cristalina revelação…
(Uma Canção, Lô Borges/ Ronaldo Bastos – Nuvem Cigana – 1982)

PRIMEIRA PARTE DE UMA MATÉRIA POR: ISABELA CAROLINA ROSA

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