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Estamos prontos para explorar a presença da música preta em outros gêneros?

Written by on dezembro 21, 2023

Você já refletiu sobre a maneira como consome música preta e o que esse consumo revela sobre criatividade e capitalismo?

 

Dezembro chegou trazendo consigo as retrospectivas das plataformas de streaming de música. Este ano, optei por não compartilhar minha própria retrospectiva, em vez disso, observei atentamente às de conhecidos. Apreciei o top 5 de um amigo, que incluía alguns artistas de rap do mainstream, rapidamente ele comentou: “É uma vergonha que só tenha os mesmos raps de sempre.” Compreendo que o top 5 é apenas uma pequena parcela do que meu amigo ouviu durante o ano, pois algumas plataformas revelam até quantos gêneros foram explorados por seu usuário. Mas, além dos subgêneros e das interseções musicais de artistas conhecidos, fiquei me perguntando quantos artistas pretos esse amigo descobriu neste ano, e quantos deles não se encaixam nos gêneros tradicionais, como, R&B, hip-hop e afins.

Antes de atirarem pedras, peço que você pause e reflita sobre a ética por trás do que ouve e como ouve. Quando se trata de artistas pretos, é difícil encontrar pessoas que exploram o que gosto de chamar pessoalmente de “limbo do streaming”. Nesse espaço, um artista conduz a outro, que por sua vez leva a mais descobertas, expandindo uma teia única e multifacetada. De repente, você se depara com outro gênero mais experimental, fora do convencional e completamente desconhecido. Uma verdadeira mina de ouro!

No entanto, apenas uma pequena parte do público atinge esse limbo, em parte devido ao que chega até nós. O processo de pesquisa e descoberta do novo pode parecer “maçante” para aqueles que consomem apenas playlists pré-fabricadas e seguem as tendências do momento no Tik Tok. Isso não é uma crítica, mas uma reflexão básica sobre por que ouvimos o que ouvimos, como o fazemos e como isso influencia uma indústria cada vez mais segmentada e racializada.

A influência da cultura negra na música é indiscutível, moldando as bases da indústria musical moderna desde o jazz e blues até o hip-hop. No entanto, mesmo em círculos artísticos nichados, artistas pretos enfrentam desafios para explorar novas sonoridades sendo frequentemente colocados em categorias pré-determinadas. A classificação padrão da música feita por artistas pretos tornou-se uma barreira para os que desejam transcender as limitações impostas pela indústria. Para escapar dessas caixas, eles precisam aprimorar e experimentar em seus próprios sons. Enquanto artistas brancos desfrutam da liberdade de explorar diversos gêneros, os artistas pretos muitas vezes se vêem confinados.

Suzi Analogue, produtora e multiartista de Baltimore baseada em Nova York, dialoga muito sobre as barreiras criadas em volta de artistas pretos, raridade na música eletrônica moderna. Ela é uma prolífica cantora, compositora, beatmaker e criadora da Never Normal Records que utiliza house, footwork, rap, reggae e trilhas sonoras para fazer música conceitual que amplifica suas histórias pessoais especiais. Artista preta que vê sua arte em amplitude, Suzi, em uma entrevista para o The New York Times, trouxe o questionamento do porquê artistas pretos não coexistirem em espaços da música experimental: “Na indústria convencional não há muito espaço para encontrar sua própria direção criativa. As pessoas dirão: ‘Ah, não sabemos como comercializar isso’. Esse é um termo genérico para discriminação e racismo no mundo da música.”

Rashad Shabazz, professor associado de Estudos Africanos e Afro-Americanos, destaca como a música ocidental moderna tem suas raízes em características sonoras pretas. No entanto, a racialização dos artistas pretos impede que se identifiquem fora das categorias urbanas, como hip-hop e R&B, que a indústria insiste em associá-los. Essas categorizações superficiais muitas vezes pretera álbuns experimentais de artistas pretos a gêneros inadequados. A definição restrita de artistas pretos e suas obras como “urbanas” não captura a complexidade e diversidade de sua música. 

Os termos “R&B” e “rap” tornaram-se rótulos genéricos para muitos artistas, enquanto a adição do termo “alternativo” ou até mesmo “hipster” ocorre quando eles exploram territórios além da música “urbana”. Isso cria uma divisão racial, onde os gêneros são definidos por quem os faz e para quem são destinados, não como são feitos, perpetuando a dificuldade para artistas pretos encontrarem e definirem sua própria direção criativa. Por que conhecemos o hip-hop, mas não reconhecemos o Footwork? Por que escutamos por exemplo produções de artistas como Devonté Hynes (Blood Orange) e as detectamos como “urban”? Porque o Grammy disse?! 

A ironia se revela nas raízes profundas da cultura preta em todos os gêneros, mesmo aqueles rotulados como “brancos”. A história da música é marcada pelo histórico de artistas pretos sendo apagados de suas contribuições, que foram absorvidas pelo mainstream branco. As palavras usadas para descrever a música vão além de meras palavras; elas evocam imagens e, por sua vez, moldam percepções. 

Essas linhas raciais permeiam gêneros que, ironicamente, têm raízes na cultura preta. A capacidade da indústria musical em definir gênero é um exercício de poder, e esse poder está intrinsecamente ligado à discriminação racial e ao sistema capitalista. A pressão para começar sua carreira em gêneros “urbanos” muitas vezes força artistas pretos a seguir uma cartilha específica, limitando sua expressão e diversidade. O público também é impactado, com a associação automática de artistas pretos apenas aos gêneros urbanos, moldando expectativas desde a infância.

Revelando essa narrativa complexa e profundamente enraizada de marginalização, categorização e apropriação, a música preta continua a ser a espinha dorsal de muitos gêneros, enquanto a indústria frequentemente falha em reconhecer e valorizar sua diversidade e inovação. “O acesso ao capital é uma obrigação para a música preta no futuro, especialmente para agentes criativos e culturais que sejam mulheres, que sejam queer, e que estejam dispostos a quebrar barreiras”, como pontua Analogue. 

É imperativo reconhecer e desafiar as barreiras impostas aos artistas pretos, permitindo-lhes explorar e expandir além. A verdadeira revolução será quando nós, como consumidores, nos comprometermos em ampliar nossas escutas e em amplificar as vozes e expressões de artistas em toda a sua riqueza e autenticidade. O futuro da música, e de nossa própria compreensão cultural, depende da nossa capacidade de abraçar essa diversidade e reconhecer o impacto indelével da música preta em nosso contexto sonoro global.

 

 

ISABELA BAURETZ

 


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